A possível aliança entre Comando Vermelho e Primeiro Comando da Capital e suas repercussões
A história recente do Brasil em matéria de segurança pública tem sido atravessada pela atuação de duas organizações criminosas de maior envergadura nacional: o Comando Vermelho (CV), surgido no Rio de Janeiro, e o Primeiro Comando da Capital (PCC), originado em São Paulo. Este artigo discute como essas organizações se estabeleceram, como se expandiram internamente e nos países vizinhos, e como sua relação, inicialmente pautada em não agressão ou convivência mais ou menos controlada, evoluiu para um conflito aberto que culminou em um pico histórico de homicídios em 2017. Também aborda como, desde então, as disputas, em especial nas regiões Norte e Nordeste, fomentadas por alianças com grupos locais, intensificaram a violência. Outro ponto de destaque é a internacionalização dessas facções, com foco crescente no tráfico de cocaína para a Europa. Por fim, o suposto acordo recente entre as lideranças do PCC e do CV para forjar uma nova aliança, suas motivações e o possível impacto desse fato no fluxo de entorpecentes e na segurança pública brasileira e internacional.
1. Origens e contextos de surgimento
O surgimento do Comando Vermelho (CV) e do Primeiro Comando da Capital (PCC) encontra raízes em transformações históricas específicas do sistema prisional brasileiro e das dinâmicas urbanas das grandes metrópoles. O CV remonta à década de 1970, formado inicialmente no contexto do presídio da Ilha Grande (Rio de Janeiro) por presos comuns que conviveram com presos políticos. Embora haja controvérsias sobre a data exata de fundação, considera-se que o CV estruturou suas bases ao longo de meados da década de 1970, articulando-se contra a violência, a precariedade e as arbitrariedades nas prisões. O simbolismo do “comando” e a ênfase em uma “união entre os encarcerados” levaram a uma série de pequenas insurreições, protestos internos e criação de um “estatuto”, embora menos formalizado do que se vê em grupos posteriores.
Já o PCC surgiu em 1993, no sistema penitenciário de São Paulo, mais precisamente na Casa de Custódia de Taubaté. Seus fundadores reivindicavam melhores condições para os presos e, de modo semelhante ao CV, pregavam a união contra a opressão do Estado e contra a violência interna que permeava as carceragens, incluindo abusos físicos e psicológicos impostos pelos próprios detentos mais fortes sobre os mais vulneráveis. A influência de massacres, como o do Carandiru em 1992 (quando 111 detentos foram mortos pela Polícia Militar), serviu de catalisador para o discurso de “luta e união” do PCC. O grupo ficou conhecido pela capacidade de organização e por um estatuto explícito, que reforçava a necessidade de solidariedade interna e combate a qualquer opressão contra seus membros.
É nesse sistema prisional marcado por superlotação, pela falta de investimento estatal, e pela ausência de controles efetivos que CV e PCC passam a estabelecer suas estruturas. Ambos se aproveitam da lógica do “controle pelo crime” dentro das cadeias, onde fornecem proteção, impõem códigos de conduta (por exemplo, vetando estupros e extorsões entre próprios presos) e criam laços de fidelidade que transcendem o espaço físico da prisão. A influência das duas organizações acabou extrapolando os muros prisionais e alcançando as periferias e favelas nas grandes cidades brasileiras, onde passaram a atuar como intermediários de conflitos e recrutar mão de obra para as atividades ilícitas ligadas ao tráfico de drogas.
2. Expansão e consolidação pelo Brasil
Após consolidarem bases nas suas regiões de origem, Rio de Janeiro, no caso do CV, e São Paulo, no caso do PCC, as duas organizações partiram para estratégias de expansão intranacional. O estopim para esse processo inclui:
Mercado de drogas: Em meados dos anos 1990, o avanço do consumo de cocaína (e, posteriormente, do crack) em todo o país criou oportunidades de negócios milionários. Em São Paulo, a estrutura em rede do PCC, somada à disciplina interna, permitiu a articulação de contatos com produtores em países vizinhos, especialmente Bolívia e Paraguai. O CV, no Rio, consolidou “bocas de fumo” em favelas cariocas, valendo-se de ocupação territorial armada.
Descentralização das rotas: Com a intensificação da repressão policial nas suas bases, houve migração de muitos integrantes para estados do Norte e Nordeste, onde a presença das forças de segurança era menos ostensiva e a repressão menor. Ali, essas facções fizeram alianças com grupos criminais locais, oferecendo estrutura logística, contatos para fornecimento de armamentos e drogas, e recebendo, em troca, facilidades para escoar a mercadoria.
Fluxo carcerário: O alto encarceramento no Brasil serviu de “ponte” para que o PCC e o CV se espalhassem. Quando membros eram transferidos para prisões federais em outros estados, levavam consigo a ideologia e a organização de suas facções, arregimentando novos adeptos ao oferecer segurança no ambiente hostil das cadeias.
No caso do PCC, o fortalecimento ocorreu em parte graças ao modelo organizacional relativamente coeso, com “sintonias” ou células de comando distribuídas regionalmente. Já o Comando Vermelho se manteve mais fragmentado, com múltiplos líderes que controlavam diferentes comunidades e presídios em função de alianças e acordos temporários. Essas distinções ajudaram o PCC a ganhar uma imagem de grupo mais “coordenado”, apto a negociar rotas de tráfico, consolidar acordos de fornecimento de drogas e otimizar lucros.
Esse período de expansão coincidiu com um aumento significativo de homicídios em âmbito nacional, pois novos atores passaram a disputar mercados locais. Em algumas cidades das regiões Norte e Nordeste, facções locais resistiram à chegada dessas grandes organizações, provocando choques violentos. As chamadas “guerras de facção” se tornaram recorrentes, resultando em rebeliões dentro de presídios, chacinas, ataques contra agentes de segurança pública e, consequentemente, um salto estatístico nos índices de violência.
3. Uma relação inicialmente pacífica e o princípio do conflito
No início dos anos 2000, ainda que CV e PCC tivessem surgido em cenários distintos, havia entre eles certa neutralidade ou, ao menos, uma convivência que evitava confrontos diretos em larga escala. Em parte, ambos preferiam focar na expansão do tráfico em seus territórios de origem, sem enfrentar abertamente uma guerra que pudesse prejudicar o negócio de drogas e arrefecer os lucros.
Nesse período, chegaram a existir boatos de acordos informais ou “pactos de não agressão” entre as duas organizações. Há menções na literatura e em investigações policiais de que advogados das duas facções teriam intermediado uma colaboração tácita para o compartilhamento de rotas de tráfico de cocaína, sobretudo no eixo que saía da Bolívia em direção às grandes capitais brasileiras. Entretanto, tais acordos nunca foram totalmente públicos ou formalizados.
Dentre os fatores que reforçaram essa “trégua” inicial estavam: o interesse comercial, já que evitar confrontos reduzia a pressão policial e preservava as rotas de fornecimento; a expansão simultânea, cada facção se ocupava de crescer em seu respectivo estado de origem e ainda não se via num confronto imediato de territórios e a articulação dentro do sistema prisional, pois as lideranças, na época, procuravam mostrar força para o Estado, mas não pretendiam cair numa guerra de grandes proporções que colocasse em risco benefícios comuns, como visitas e brechas no controle das cadeias.
Contudo, essa aparência de convivência pacífica começou a ruir à medida que as facções foram se chocando em territórios estratégicos para o tráfico, sobretudo nas fronteiras do Brasil com o Paraguai, Bolívia e Peru. O acesso às regiões produtoras de cocaína e às rotas fluviais (na Amazônia) e portuárias (no Nordeste e Sudeste) tornou-se disputado. E foi a partir de meados da década de 2010 que os relatos de escaramuças e assassinatos seletivos entre integrantes de PCC e CV se intensificaram.
4. Pico de homicídios em 2017 e a projeção do problema
O conflito entre PCC e CV ganhou intensidade e relevância nacional a partir de 2016, refletindo-se no aumento de homicídios e chacinas em unidades prisionais. De modo especial, a crise prisional que eclodiu no início de 2017 colocou o Brasil diante de rebeliões violentas, com decapitações e grande número de mortos. Um dos episódios de maior repercussão ocorreu em Manaus (AM), onde dezenas de presos foram assassinados em embate entre grupos ligados ao CV e alianças locais que se opunham a facções associadas ao PCC.
Em 2017, o país registrou um recorde de homicídios, superando 64 mil mortes violentas. Vários estudos e relatórios de segurança pública relacionaram parte significativa desses índices aos embates entre facções, pois grande parcela das vítimas estava vinculada ao tráfico de drogas ou se encontrava em áreas sob disputa territorial. Estados do Norte, como Amazonas, Roraima e Acre, bem como alguns do Nordeste, como Ceará e Rio Grande do Norte, sofreram um acréscimo abrupto nas taxas de homicídios, em geral associados a facções rivais aliadas ao PCC e CV. A presença do CV nesses locais se dava através de alianças históricas ou pela cooptação de grupos locais menores, enquanto o PCC também buscava fincar bandeira ao oferecer infraestrutura de fornecimento de cocaína e armamentos.
Esse recorde de violência explicitou não só a fragilidade do sistema prisional, mas também a ausência de uma política de segurança pública integrada e eficaz. A guerra declarada entre CV e PCC mostrava um avanço inédito, gerando pânico em vários centros urbanos e levando governadores a pedir auxílio federal. Em certos casos, o Exército brasileiro foi convocado para operações de garantia da lei e da ordem (GLO), mas tais medidas não atacavam a raiz do problema e, frequentemente, terminavam sem resultados estruturais.
5. Disputas no Norte e Nordeste e a aliança com grupos locais
Desde meados da década de 2010, as regiões Norte e Nordeste se tornaram palco privilegiado das disputas entre PCC e CV, muito em função das rotas de tráfico internacional que passam pela Amazônia, principalmente as que percorrem o rio Solimões e o rio Amazonas, e da proximidade com as fronteiras do Peru e Colômbia, grandes produtores de cocaína. Além disso, a costa nordestina oferece portos potenciais para o embarque internacional das drogas em direção à Europa.
O Comando Vermelho, que desde os anos 1980 já havia se expandido para alguns estados como Ceará, Maranhão e Pará, passou a reforçar pactos com grupos locais que controlavam frações do tráfico urbano. Em algumas localidades, o CV atuava ao lado de facções menores, oferecendo proteção e fornecimento de armamento mais pesado. Já o PCC também seguiu estratégia análoga. Entretanto, diferentemente do CV, mais fragmentado e dividido em “franquias”, o PCC tentava impor um modelo unificado de disciplina e padronização, exigindo fidelidade dos aliados e buscando eliminar grupos rivais que se recusassem a aderir. Consequentemente, o confronto tornou-se inevitável.
Os efeitos desse embate foram devastadores em termos de índices de violência. Estados como Rio Grande do Norte e Ceará viram seus indicadores de homicídio crescer de forma alarmante entre 2016 e 2018, a ponto de mobilizar forças-tarefa de segurança. Nas principais capitais da região, as execuções ligadas à rivalidade entre CV e PCC, ou entre ambos e terceiros grupos, passaram a se tornar parte do cotidiano. Em paralelo, presídios lotados e mal administrados favoreceram fugas em massa, rebeliões cruéis e assassinatos que repercutiram na mídia nacional e internacional.
Para as populações locais, a presença crescente das facções representou mudança na dinâmica das comunidades. Em alguns lugares, houve certa redução de crimes de rua não autorizados pela facção dominante, mas o preço disso foi a subordinação das comunidades a essas organizações, que passaram a ditar regras de convivência, impor “toque de recolher” e cobrar taxas ilegais de comerciantes.
6. Atuação internacional e foco crescente na Europa
A escalada da produção de cocaína nos países andinos ao longo das últimas décadas tornou a América do Sul,e, portanto, o Brasil, um corredor fundamental para o tráfico internacional. O PCC foi pioneiro no estabelecimento de contatos diretos com produtores bolivianos e laboratórios localizados na fronteira Brasil–Paraguai–Bolívia. A facção buscou eliminar intermediários, adquirindo a droga em grandes quantidades para distribuição interna e exportação. Gradativamente, passou também a enviar cocaína para a Europa, especialmente via portos brasileiros, como Santos (SP) e Paranaguá (PR).
O CV, embora menos estruturado em termos de organização central, também passou a investir na conexão internacional. Conseguiu parcerias na rota do Solimões, que segue pelos rios amazônicos até o litoral, e, de lá, a droga pode seguir em navios para a África ou Europa. A difusão de “encomendas” em contêineres e a atuação de mulas humanas em voos comerciais completaram esse quadro. Em meio a essa corrida por rotas e contatos, conflitos novos surgiram, muitas vezes expondo até mesmo diferenças de política interna entre as lideranças.
O crescente mercado consumidor de cocaína na Europa atraiu ainda mais a atenção das facções, pois os lucros podiam ser multiplicados várias vezes em comparação ao comércio doméstico. Aprofundou-se, então, o relacionamento com máfias estrangeiras e criminosos radicados fora do Brasil, sejam nigerianos, italianos ou grupos de países do Leste Europeu. Nesse cenário, PCC e CV perceberam que a guerra destrói pontes e cria custos, razão pela qual surgem, ao longo de todo esse período, especulações sobre aproximações estratégicas entre ambas as facções em prol de melhores condições de tráfico internacional e mitigação das restrições impostas pelos presídios federais.
7. Rumores de nova aliança e motivações
No início de 2025, diversas reportagens e relatórios de inteligência de órgãos de segurança passaram a apontar para uma possível aproximação entre o PCC e o CV, fomentada pelas próprias lideranças das duas maiores organizações, que seguem presas em unidades de segurança máxima do sistema penitenciário federal. A maior parte das especulações gira em torno de dois fatores centrais:
Pressão sobre o sistema penitenciário federal: As penitenciárias federais brasileiras impõem regime muito mais rígido de isolamento às principais lideranças das facções, inviabilizando comunicações frequentes. As facções tentariam uma aliança para pressionar as autoridades a rever regras como falta de contato físico nas visitas e uso do parlatório, que dificultam a transmissão de ordens. Há notícias de que advogados de ambos os grupos teriam discutido estratégias jurídicas conjuntas para questionar, na Justiça, as restrições impostas.
Interesse comercial nas rotas internacionais: Uma eventual pacificação entre as duas maiores organizações criaria maior previsibilidade nos acordos e compartilhamento de rotas, reduzindo perdas com confrontos internos. Uma aliança mais firme poderia permitir que PCC e CV enviassem cocaína à Europa de forma mais coordenada, aproveitando especialistas logísticos de cada lado. Haveria também oportunidades de expandir ainda mais os mercados sul-americanos, mantendo a estabilidade nos presídios e nas ruas.
Entretanto, surgiu a controvérsia sobre se, de fato, tal aliança foi concretizada ou se não passou de erro de interpretação das forças de segurança em relação a mensagens interceptadas. Algumas autoridades classificaram a suposta trégua como “falha de comunicação codificada”. Mas, em paralelo, surgem notícias de estados que confirmaram já ter sinais concretos de cooperação e paralisação de conflitos entre CV e PCC. Relatos de presos pedindo transferência para unidades onde a facção rival é dominante reforçam a tese de que, em alguns lugares, o acordo teria sido implantado, selando um fim de hostilidades ou, no mínimo, suspendendo ataques.
8. Sinais da aliança nos estados brasileiros
Essa aliança, forjada inicialmente em presídios de segurança máxima, parece agora ultrapassar os muros carcerários ao estabelecer pactos de não agressão e colaboração em rotas estratégicas para o tráfico de drogas e outras práticas ilícitas. A seguir, descrevem-se exemplos de como essa coalizão tem ocorrido nas diferentes regiões e quais estados já sinalizam, de forma mais concreta, a efetividade desse acordo.
Norte do Brasil
- Amazonas: A rota do Solimões, vital para o escoamento de entorpecentes rumo a outras regiões, tornou-se um ponto de interesse para as duas facções. Autoridades locais confirmaram “salves” (mensagens internas) proibindo confrontos diretos entre membros de PCC e CV, sobretudo em Manaus e cidades vizinhas. A possível consequência é uma diminuição das disputas armadas na capital, mas um fortalecimento das redes de tráfico fluvial que atravessam o estado.
- Acre e Roraima: Ambos registraram indícios de trégua nos presídios. Relatórios de inteligência apontam que presos ligados às duas organizações receberam ordens para suspender ataques entre si, evitando retaliações e mortes. Em Roraima, onde históricas rebeliões envolveram membros do PCC e de facções locais, a orientação para unificação de advogados e esforços para reduzir a vigilância estatal reforça a ideia de cooperação.
Nordeste
- Ceará: Órgãos de inteligência estadual confirmaram mensagens circulando entre membros do CV e PCC, impondo interrupção em confrontos. O principal foco é Fortaleza e cidades do interior onde ocorriam conflitos intensos pelo controle de território e narcotráfico. A “paz forçada” tem gerado quedas pontuais nos índices de homicídios entre faccionados, mas desperta preocupação em relação à expansão conjunta das duas organizações.
- Piauí, Rio Grande do Norte e Alagoas: Da mesma forma, esses estados indicam movimentos similares de trégua. No Rio Grande do Norte, salves reforçam que qualquer retaliação entre PCC e CV será punida, mirando a manutenção de rotas de transporte de drogas na divisa com a Paraíba e o Ceará. Em Alagoas, o reforço no sistema prisional e relatórios de investigação exibem sinais de coordenação entre presos das duas facções para ações fora dos presídios.
- Sergipe: A cooperação foi detectada, sobretudo, em unidades prisionais e em bairros periféricos. As polícias locais monitoram salves que desencorajam ataques contra rivais históricos, estratégia interpretada como forma de otimizar recursos e expandir o tráfico.
Centro-Oeste e Sudeste
- Minas Gerais: Apesar de não ter sido, historicamente, um dos estados mais dominados por uma única facção, Minas tem registrado relatos de “não agressão” entre grupos ligados ao PCC e membros do CV em áreas de rota para São Paulo e Rio de Janeiro. Interceptações telefônicas e documentos internos confirmam esforços para evitar disputas que fragilizem a logística de drogas e armas.
- São Paulo: Embora seja o berço do PCC, o estado pouco sinaliza uma trégua “externa”, já que o PCC atua de forma mais hegemônica em São Paulo. As menções à aliança aparecem especialmente em função de “colaborações pontuais” no interior paulista, sobretudo para o tráfico interestadual. As autoridades locais continuam vigilantes quanto a eventuais articulações junto ao CV, mas consideram o estado como núcleo consolidado do PCC, onde a trégua tem pouca relevância prática, pois a organização paulista raramente sofre concorrência significativa do CV em território paulistano.
- Mato Grosso do Sul: Estratégico por causa das fronteiras com Paraguai e Bolívia, o estado vê movimentações paralelas de PCC e CV, mas com fortes riscos de atrito por disputas de rotas. Algumas lideranças têm preferido a colaboração temporária para garantir o escoamento da droga, ainda que com incidentes pontuais de violência.
Estados com menor sinal de trégua
Enquanto há estados que confirmam o armistício, outros negam qualquer evidência de paz entre as duas facções. A Polícia Civil de Goiás, por exemplo, declarou não ter identificado alinhamentos claros ou ordens expressas que coíbam agressões mútuas no contexto local. No Rio de Janeiro, permanece a rivalidade territorial; o CV é ainda o grupo mais forte, mas enfrenta também a concorrência de outras facções locais (como o Terceiro Comando Puro) e das milícias. Nesse sentido, não há relatos de colaboração efetiva entre PCC e CV nas comunidades cariocas.
9. Possíveis repercussões de uma aliança
A confirmação de uma aliança estável entre PCC e CV poderia ter múltiplas consequências para o cenário de segurança pública e para o tráfico internacional:
-Aumento do fluxo de drogas: Com rotas compartilhadas e logística unificada, a quantidade de entorpecentes enviados ao exterior poderia crescer sensivelmente. Haveria maior especialização na lavagem de dinheiro e uso de intermediários internacionais. Esse fortalecimento conjunto diminuiria o impacto de eventuais apreensões policiais, pois os prejuízos seriam distribuídos entre grandes grupos.
- Redução imediata de homicídios entre as duas facções: Disputas sangrentas em muitos estados poderiam ser interrompidas, reduzindo, em um primeiro momento, o número de mortes ligadas diretamente a confrontos internos ao crime. Porém, grupos menores que não se alinhassem poderiam ser dizimados, o que, por outro lado, pode gerar surtos localizados de violência.
- Maior desafio para o Estado: Se deixarem de se enfrentar, PCC e CV passariam a encarar, de maneira mais organizada, o Estado como inimigo comum, ou seja, visando flexibilidade no regime carcerário e menor repressão. A soma de recursos financeiros e de influência política do tráfico poderia intensificar estratégias de corromper agentes públicos ou de realizar ações coordenadas de pressão (como ondas de ataques em grandes cidades para reivindicar “benefícios” no sistema penitenciário).
- Ameaça de fugas e rebeliões: Caso se fortaleçam em conjunto, pode haver tentativas de resgates espetaculares de lideranças, maior mobilização de advogados e protestos orquestrados. O aparato federal tem se preparado para essa hipótese, mas historicamente as estruturas de segurança mostram limitações.
- Impacto internacional: Serviços de inteligência de países europeus e até dos Estados Unidos acompanharão mais de perto a rota brasileira, por considerarem que a unificação das duas maiores facções poderia inaugurar uma nova potência do crime organizado, competindo em escala transnacional. A pressão diplomática para que o Brasil aja com mais rigor contra essas organizações pode se intensificar.
Diante dessas perspectivas, existem estados nos quais a “suposta aliança” ainda não se verificou ou é desmentida pelas autoridades. De fato, a realidade brasileira é heterogênea: em certos locais, PCC e CV seguem em confronto, e em outros, percebe-se relativa trégua. Isso sugere que as lideranças buscam uma política de alianças adaptada a cada contexto regional, observando fatores como a existência de grupos aliados já consolidados, conveniências comerciais e o grau de repressão policial ou judicial.
10. Conclusão
A trajetória do Comando Vermelho e do Primeiro Comando da Capital, desde suas origens no sistema prisional brasileiro até a expansão territorial e internacional, revela muito sobre a precariedade das estruturas estatais de segurança e sobre a enorme complexidade do fenômeno do crime organizado no país. Formadas em meio à superlotação carcerária e às injustiças de um sistema permeado por desigualdades sociais, ambas as organizações adotaram, inicialmente, um discurso de proteção do preso e, em seguida, voltaram-se cada vez mais para a exploração econômica do tráfico de drogas, ao ponto de se converterem nas maiores facções do país.
O ano de 2017, marcado por um pico histórico de homicídios, expôs os efeitos devastadores da rivalidade entre CV e PCC. A luta por rotas de tráfico, especialmente no Norte e Nordeste, acentuou a crise prisional e a desarticulação das forças de segurança. Por outro lado, a crescente demanda europeia de cocaína incentivou a internacionalização dos negócios ilícitos. Nesse cenário, uma suposta aliança, arquitetada por lideranças presas em unidades federais, ganha contornos de estratégia conjunta para amenizar restrições no regime carcerário e fortalecer o tráfico em escala transnacional.
Se tal aliança se consolidar efetivamente, poderemos assistir a uma rearranjo notável no crime organizado brasileiro, com maior fluxo de drogas, redução de homicídios ligados a confrontos internos e uma coesão inédita contra o aparelho estatal de repressão. Ao mesmo tempo, permanecerão as disputas localizadas e a imposição de uma ordem paralela em áreas urbanas periféricas, onde as facções tendem a agir como uma espécie de poder de facto. O Brasil, já acostumado a políticas pontuais e pouco eficientes no combate ao crime organizado, necessitará de abordagens muito mais articuladas, combinando inteligência, reformas no sistema carcerário e cooperação internacional para mitigar o avanço desse novo arranjo criminal.
Por fim, o caso brasileiro ilustra como a negligência histórica do Estado nas regiões periféricas, somada a um sistema prisional falho e a um mercado lucrativo de entorpecentes, dá margem a organizações capazes de desafiar o monopólio estatal da força. A análise da possível união entre PCC e CV deve levar em conta não apenas aspectos de confrontos pontuais, mas todo um contexto estrutural que inclui desigualdade social, corrupção, políticas penitenciárias frágeis e a constante demanda por drogas dentro e fora do país. Em jogo, está a própria configuração de poder em muitas áreas urbanas do Brasil, onde, se as duas facções deixarem de se enxergar como inimigas, restará apenas um oponente central a enfrentar: o Estado brasileiro, ainda pouco preparado para as consequências dessa mudança.
https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/alianca-de-faccoes-criminosas/?srsltid=AfmBOorXQY-3nL4TM6hMYf3elEeVTYZH4lNa1NNSPAsaApYYqLqcy-F-
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2025/02/27/apos-alianca-criminosos-do-pcc-pedem-transferencia-para-cadeias-do-cv.htm
https://mais.opovo.com.br/jornal/reportagem/2025/02/15/repercussoes-da-tregua-entre-cv-e-pcc-no-ceara.html
https://emtempo.com.br/372518/policia/tregua-entre-pcc-e-cv-no-amazonas-e-anunciada-em-salve-veja-print/
https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2025/02/27/nove-estados-brasileiros-confirmam-sinais-de-tregua-entre-pcc-e-cv.ghtml
https://www.metropoles.com/colunas/mirelle-pinheiro/tregua-entre-pcc-e-cv-foi-falha-de-comunicacao-aponta-relatorio
https://www.agazeta.com.br/colunas/vilmara-fernandes/por-que-a-suposta-tregua-do-pcc-e-cv-nao-afetou-grupos-criminosos-no-es-0225
https://www.ihu.unisinos.br/categorias/185-noticias-2016/561511-tabuleiro-do-crime-o-jogo-de-xadrez-por-tras-da-guerra-entre-pcc-e-cv
https://www.estadao.com.br/brasil/por-que-pcc-e-comando-vermelho-negociaram-tregua-e-possivel-alianca-segundo-tv/?srsltid=AfmBOopRQE1PRZyc7IVvjuW5h4eDuXo8WavXRB5IcFLK30xO1QFeyKMf
https://www.campograndenews.com.br/brasil/cidades/com-guerra-sangrenta-em-ms-comando-vermelho-e-pcc-tem-tregua-nacional
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2025/03/alem-de-pec-governo-lula-prepara-3-projetos-de-lei-para-a-seguranca-publica.shtml
La tregua entre el PCC y el Comando Vermelho promete una paz imperfecta
https://www.portaldoholanda.com.br/amazonas/cv-e-pcc-fazem-tregua-com-salves-e-autoridades-temem-pelo-amazonas
https://emtempo.com.br/372518/policia/tregua-entre-pcc-e-cv-no-amazonas-e-anunciada-em-salve-veja-print/
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2025/02/17/tregua-entre-pcc-e-cv-acende-alerta-para-fugas-e-rebelioes-em-presidios.htm
https://www.jornalopcao.com.br/ultimas-noticias/tregua-entre-pcc-e-cv-nao-foi-identificada-em-goias-680998/
Manso, B. P., & Dias, C. N. (2017). PCC, sistema prisional e gestão do novo mundo do crime no Brasil. Revista brasileira de segurança pública, 11(2), 10-29.
Rodrigues, F. D. J., Feltran, G., & Zambon, G. (2023). Apresentação: expansão das facções, mutação dos mercados ilegais. Novos estudos CEBRAP, 42(1), 11-18.
Salla, F. (2023). Le organizzazioni criminali brasiliane: i casi del Primeiro Comando da Capital (PCC) e del Comando Vermelho (CV). Rivista di Studi e Ricerche sulla criminalità organizzata, 9(4).